Em
busca de uma ‘ordem própria’ André transgride, ao contrapor a ordem do pai e o
caos da mãe, a inflexibilidade paterna diante do afeto materno, a razão e a
paixão, tristeza e alegria, claro e escuro, público e privado, sagrado e
profano, amor e cólera, família e natureza, arrependimento e esperança, galho
da direita “desenvolvimento espontâneo do tronco” e galho da esquerda “estigma
de uma cicatriz”. É a dualidade presente. É a tragédia. O livro
é belíssimo o filme é singular.
Uma frase que destaco: “estamos indo sempre
para casa”.
Um
capítulo que destaco: 9 - Raduan Nassar
“Que
rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai
à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada
pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves
marcando as horas: ”O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor;
embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o
conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem
fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover
igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por
exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois
uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha
nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo
nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da
nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina,
nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos
corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó
que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que
coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se
estende, mãos e braços, em terra largas; rico só é o homem que aprendeu,
piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não
contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não
irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com
sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida
depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade
de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco,
ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso, ninguém em nossa
casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo que
a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém
em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à
frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um
empreendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as
coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo
que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa; aquele que
exorbita no uso do tempo, precipitando-se de modo afoito, cheio de pressa e
ansiedade, não será jamais recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a
justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça
cheia; mas fica a salvo do malogro e livre da decepção quem alcançar aquele
equilíbrio, é no manejo mágico de uma balança que está guardada toda a
matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a
quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto,
a intervenção ágil ao mais sutil desnível; são sábias as mãos rudes do peixeiro
pesando sua pesca de cheiro forte: firmes, controladas, arrancam de dois pratos
pendentes, através do cálculo conciso, o repouso absoluto, a imobilidade e sua
perfeição; só chega a este raro resultado aquele que não deixa que um tremor maligno
tome conta de suas mãos, e nem que esse tremor suba corrompendo a santa força
dos braços, e nem circule e se estenda pelas áreas limpas do corpo, e nem
intumesça de pestilências a cabeça, cobrindo os olhos de alvoroço e muitas
trevas; não é na bigorna que calçamos os estribos, nem é inflamável a fibra com
que tecemos as tranças de nossas rédeas, pode responder a que parte vai quem
monta, por que é célere, um potro xucro? o mundo das paixões é o mundo do
desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e
com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo
emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e
clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem
do outro lado; e nenhum entre nós há de transgredir esta divisa, e nenhum entre
nós há de estender sobre ela sequer a vista, nenhum entre nós há de cair jamais
na fervura desta caldeira insana, onde uma química frívola tenta dissolver e
recriar o tempo; não se profana impunemente ao tempo a substância que só ele
pode empregar nas transformações, não lança contra ele o desafio quem não
receba de volta o golpe implacável do seu castigo; ai daquele que brinca com
fogo: terá as mãos cheias de cinza; ai daquele que se deixa arrastar pelo calor
de tanta chama: terá a insônia como estigma; ai daquele que deita as costas nas
achas desta lenha escusa: há de purgar todos os dias; ai daquele que cair e
nessa queda se largar: há de arder em carne viva; ai daquele que queima a
garganta com tanto grito: será escutado por seus gemidos; ai daquele que se
antecipa no processo das mudanças: terá as mãos cheias de sangue; ai daquele,
mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de um modo intenso: terá as mãos
cheias de gesso, ou pó de osso, de um branco frio, ou quem sabe sepulcral, mas
sempre a negação de tanta intensidade e tantas cores: acaba por nada ver, de
tanto que quer ver; acaba por nada sentir, de tanto que quer sentir; acaba só
por expiar, de tanto que quer viver; cuidem-se os apaixonados, afastando dos
olhos a poeira ruiva que lhe turva a vista, arrancando dos ouvidos os
escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor das glândulas
o visgo peçonhento e maldito; erguer uma cerca ou guardar simplesmente o corpo,
são esses os artifícios que devemos usar para impedir que as trevas de um lado
invadam e contaminem a luz do outro, afinal, que força tem o redemoinho que
varre o chão e rodopia doidamente e ronda a casa feito fantasma, se não expomos
nossos olhos à sua poeira? é através do recolhimento que escapamos ao perigo
das paixões, mas ninguém no seu entendimento há de achar que devamos sempre
cruzar os braços, pois em terras ociosas é que viceja a erva daninha: ninguém
em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a terra para lavrar, ninguém
em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer,
ninguém ainda em nossa casa há de cruzar os brancos quando existe o irmão para
socorrer; caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato
do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade,
abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós a contemplação, e só agirmos
quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o
tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é sempre abundante em suas
entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a
dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos
indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens triste, o
consolo aos desamparado, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos
inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranquilos, a umidade às
almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome
aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a
todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa
vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência
absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto
neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é
que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados,
fruindo religiosamente a embriaguez da espera no consumo sem descanso desse
fruto universal, inesgotável, sorvendo até a exaustão o caldo contido em cada
bago, pois só nesse exercício é que amadurecemos, construindo com disciplina a
nossa própria imortalidade, forjando, se formos sábios, um paraíso de brandas
fantasias onde teria sido um reino penoso de expectativas e suas dores; na
doçura da velhice está a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra
cabeceira, está o exemplo: é na memória do avô que dormem nossas raízes, no
ancião que se alimentava de água e sal para nos prover de um verbo limpo, no
ancião cujo asseio mineral do pensamento não se perturbava nunca com as
convulsões da natureza; nenhum entre nós há de apagar da memória a formosa
senilidade dos seus traços; nenhum entre nós há de apagar da memória sua
descarnada discrição ao ruminar o tempo em suas andanças pela casa; nenhum
entre nós há de apagar da memória suas delicadas botinas de pelica, o ranger
das tábuas nos corredores, menos ainda os passos compassados, vagarosos, que só
se detinham quando o avô, com dois dedos no bolso do colete, puxava suavemente
o relógio até a palma, deitando, como quem ergue uma prece, o olhar calmo sobre
as horas; cultivada com zelo pelos nossos ancestrais, a paciência há de ser a
primeira lei desta casa, a viga austera que faz o suporte das nossas
adversidades e o suporte das nossas esperas, por isso é que digo que não há
lugar para a blasfêmia em nossa casa, nem pelo dia feliz que custa a vir, nem
pelo dia funesto que súbito se precipita, nem pelas chuvas que tardam mas
sempre vêm, nem pelas secas bravas que incendeiam nossas colheitas; não haverá
blasfêmia por ocasião de outros reveses, se as crias não vingam, se a rês definha,
se os ovos goram, se os frutos mirram, se a terra lerda, se a semente não
germina, se as espigas não embucham, se o cacho tomba, se o milho não grana, se
os grãos caruncham, se a lavoura pragueja, se se fazem pecas as plantações, se
desabam sobre os campos as nuvens vorazes dos gafanhotos, se raiva a tempestade
devastadora sobre o trabalho da família; e quando acontece um dia de um sopro
pestilento, vazando nossos limites tão bem vedados, chegar até as cercanias da
moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas das nossas portas e
janelas, alcançando um membro desprevenido da família, mão alguma em nossa casa
há de fechar-se em punho contra o irmão acometido: os olhos de cada um, mais
doces do que alguma vez já foram, serão para o irmão exasperado, e a mão
benigna de cada um será para este irmão que necessita dela, e o olfato de cada
um será para respirar, deste irmão, seu cheiro virulento, e a brandura do
coração de cada um, para ungir sua ferida, e os lábios para beijar ternamente
seus cabelos transtornados, que o amor na família é a suprema forma da
paciência; o pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da
família está o acabamento dos nossos princípios; e, circunstancialmente, entre
posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos
pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois,
na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos
assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhes
amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo
habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus
desígnios insondáveis, sinuosos, como são se questionam aos puros planos das
planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos
rebanhos: que o gado sempre vai ao cocho, o gado sempre vai ao poço; hão de ser
esses, no seu fundamento, os modos da família: baldrames bem travados, paredes
bem amarradas, um teto bem suportado; a paciência é a virtude das virtudes, não
é sábio quem desespera, é insensato quem não se submete.” E o pai à cabeceira
fez a pausa de costume, curta, densa, para que medíssemos em silêncio a
majestade rústica da sua postura: o peito de madeira debaixo de um algodão
grosso e limpo, o pescoço sólido sustentando uma cabeça grave, e as mãos de
dorso largo prendendo firmes a quina da mesa como se prendessem a barra de um
púlpito; e aproximando depois o bico de luz que deitava um lastro de cobre mais
intenso em sua testa, e abrindo com os dedos maciços a velha brochura, onde
ele, numa caligrafia grande, angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai,
ao ler, não perdia nunca a solenidade: “Era uma vez um faminto.”
(Lavoura Arcaica)
(Lavoura Arcaica)
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