19 de abr. de 2008

O trabalho


Todos os dias pela manhã ela acordava, arrumava a cama, limpava o quarto e corria para o trabalho.
Certo dia, ela acordou mais cedo, olhou as paredes brancas do quarto e como se fosse um dia qualquer levantou. Tomou um demorado banho frio, coisa que não costumava fazer pela manhã, seu banho sempre fora ao meio-dia ou à tardinha. Vestiu um vestido leve e branco que costumava usar no verão a noite, tomou o desjejum e saiu para a rua gelada.

Alguma coisa estava errada, alguma coisa a inquietava. Não sabia dizer o quê.

Saiu pela porta com muita facilidade e sobressaltada na calçada, pensou ter deixado a porta aberta. Voltou vagarosamente e aliviada constatou que a porta estava fechada.

Os olhos atentos a tudo e a todos. Tinha a impressão que a vida estava mais viva, as coisas pareciam mais reais, o mundo parecia mais colorido. Uma perfeição do eterno momento que não conseguia explicar. Só uma sensação de estranheza teimava em lhe incomodar.

Passou lentamente pelo mercado, que costumava passar todo o dia e pela primeira vez prestou atenção nos trabalhadores que estavam correndo apressadamente, carregando caixas, pacotes, mercadorias. Estavam muito atarefados e não a reconheceram, não a cumprimentaram.

Acenou distraída para um menino que brincava com um gatinho, que desvencilhou-se no mesmo instante, para continuar brincando depois.

Finalmente, chegou ao serviço. Sentiu-se como uma estranha, uma sensação esquisita que não conseguia entender. Todos a ignoravam, era como se os colegas não a enxergassem. Estavam todos como cegos, distantes, preocupados com seus próprios pensamentos, seus próprios afazeres, suas próprias vidas. Movimentavam-se rapidamente de um lado para o outro no caos dos corredores do edifício onde trabalhava e funcionava a bolsa de valores.

Chegou à sala do Setor administrativo, onde passava a maior parte do tempo e sentiu um perfume diferente, uma energia diferente inundava o ambiente. Na cadeira, um bolsa desconhecida. Estranhou também a foto no porta retrato. Estranhou ao ver o computador ligado. Será que esquecera ligado na noite anterior? Costumava trabalhar até tarde. Não conseguia pensar direito, aliás estava desacostumada a pensar, sua atenção era voltada só para o trabalho.

Olhou demoradamente pela janela, tudo se movia rapidamente. De um lado para o outro, num aparecer e desaparecer, como ondas que se formam grandiosas para sumir depois. Estranhou. Suspirou profundamente, aspirou o ar que entrava pela janela, numa tentativa de buscar um fôlego de vida e sem titubear começou a trabalhar.

Trabalhou o dia inteiro, sem que a notassem, um dia que passou despercebida, um dia que sentiu-se livre, pode despertar uma melancolia de intenso prazer, que transformou-se após dois dias, três dias, muitos dias em uma interminável depressão.

Havia perdido sua individualidade, no silêncio do movimento. Não conseguia sentir os dias, não conseguia sentir amor, tudo era cinzento, sombrio, vazio, ausente de presença, ausente de experiência. O dia tinha sumido, a noite tinha sumido. Até quem em uma certa manhã despertou como de costume e tudo estava branco, o quarto tinha sumido também.

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