23 de out. de 2008

O mal em todas as suas cores 'clique aqui'

"Se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido. p. 93
É estranho eu aqui, falando comigo mesma! Antes era tudo meio cheio, lotado, atolado, 'ensopado' (lembra Fabi?). Agora estou aqui, teclando solitária, blá blá blá solitárias, desejos solitários, solidão solitária, vontades solitárias, sofrimento solitário. "Que coisa bem chata?" lamentos, lamentos, lamentos....Caramba! _________________________
"Não se constranja, esteja como que em sua casa, sobretudo, não tenha tanta vergonha de si mesmo, porque todo o mal vem daí." Stárets p.54 II Um velho palhaço. Livro II Uma reunião inoportuna. Dostoiévski. Os irmãos Karamázov.
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NARCISISMO EGOÍSTA - "Numa palavra: trabalho por um salário, exijo-o imediatamente, sob forma de elogios e de amor em troca do meu. De outro modo, não posso amar ninguém. IV Uma dama sem muita fé. Livro II Uma reunião inoportuna. Dostoiévski. Os irmãos Karamázov. pág.68
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"Eu amo a humanidade - dizia ele -, mas admiro-me de mim mesmo. Quanto mais amo a humanidade em geral, menos amo as pessoas em particular, como indivíduos. Muitas vezes tenho sonhado apaixonadamente em servir à humanidade, e talvez tivesse mesmo subido ao calvário por meus semelhantes, se tivesse sido preciso, embora não possa viver com ninguém dois dias no mesmo quarto. Sei por experiência. Quando alguém está junto de mim, sua personalidade oprime meu amor-próprio e constrange minha liberdade. Em vinte e quatro horas, posso antipatizar com as melhores pessoas: uma, porque fica muito tempo na mesa, outra, por que está resfriada e só faz espirrar. Torno-me o inimigo dos homens, logo que ficam em contato comigo. Em compensação, invariavelmente, quanto mais detesto as pessoas em particular, mas ardo de amor pela humanidade em geral."IV Uma dama sem muita fé. Livro II Uma reunião inoportuna. Dostoiévski. Os irmãos Karamázov. p.68
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"Ora, predigo-lhe que no momento em que a senhora verificar com terror que, apesar de todos os seus esforços, não somente a senhora não se aproximou do alvo, mas até mesmo dele se afastou - neste momento, digo-lhe - a senhora atingirá o alvo e verá acima da senhora a força misteriosa do Senhor, que a terá guiado com amor, sem que a senhora soubesse."IV Uma dama sem muita fé. Livro II Uma reunião inoportuna. Dostoiévski. Os irmãos Karamázov. p.69
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"Jamais consegui compreender como se pode amar o próximo. É precisamente, na minha opinião, o próximo que não se pode amar, ou somente a distância (...) Para que possa amá-lo, é preciso que um homem esteja oculto; a partir do momento em que ele mostra seu rosto, o amor desaparece (...). Dizia também que muitas vezes, para almas inexperientes, o rosto de um homem é um obstáculo ao amor. O amor do Cristo pelos homens é uma espécie de milagre impossível na terra. É verdade que Ele era Deus; mas nós não somos deuses." Dostoiévski. Os irmãos Karamázov. p.250
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A revolta

IV
A REVOLTA
- Devo confessar-lhe uma coisa - começou Ivan. - Jamais consegui compreender como se pode amar o próximo. É precisamente, na minha opinião, o próximo que não se pode amar, ou somente a distância. Li em algum lugar, a propósito de li!;)1santo, João, o Misericordio- SO,55a quem um passante faminto e transido de frio foi um dia supli-
car que o aquecesse; o santo deitou-se com ele, tomou-o nos seus braços e começou a sopf{ir seu hálito na boca purulenta do infeliz, infectada por uma horrível moléstia. Estou convencido de que fez isso com esforço, mentindo a si mesmo, num sentimento de amor ditado pelo dever e por espírito de penitência. Para que possa amá- 10, é preciso que um homem esteja oculto; a partir do momento em que ele mostra seu rosto, o amor desaparece. - O stárets Zósima falou várias vezes sobre isso - observou Aliócha. - Dizia também que muitas vezes, para almas inexperientes, o rosto de um homem é um obstáculo ao amor. Há, no entanto, muito amor na humanidade, um amor quase igual ao do Cristo, eu mesmo sei disso, Ivan... - Pois bem, eu não sei ainda e não posso compreendê-Io; muitos estão no mesmo caso. Trata-se de saber se isso provém dos maus pendores, ou se é inerente à natureza humana. Na minha opinião~ amor do Cristo elos homens é uma es é . . r'm ossível na Terra. É verda e que Ele era Deus; mas nós não somos deuses. "'" ~ . -~ Suponhamos, por exemplo, que eu sofra profundamente, outro não poderá jamais saber a que ponto eu sofro, porque é outro e não eu. Além do mais, é raro que um indivíduo consinta em reconhecer o sofrimento de seu próximo (como se fosse uma dignidade!). Por que isso, que você acha? Talvez porque cheiro mal, tenho o ar estúpido ou pisei o pé daquele senhor! Além disso, há diversos sofrimentos: o que humilha, a fome, por exemplo, meu benfeitor irá querer admiti- 10;mas desde que meu sofrimento se eleva, que se trata de uma idéia, por exemplo, só nela acreditará por exceção porque talvez, examinando- me, verá que não tenho o rosto que sua imaginação empresta a um homem que sofre por uma idéia. Logo cessará seus benefícios e isto sem maldade. Os mendigos, sobretudo aqueles que têm alguma nobreza, não deveriam jamais mostrar-se mas pedir esmola por intermédio dos jornais. Em teoria, ainda, pode-se amar seu próximo, e até mesmo de longe; de perto, é quase impossível. Se, pelo menos, tudo se passasse como no palco, nos balés em que os pobres em farrapos de seda e com rendas rasgadas mendigam, dançando graciosamente, ainda seria possível admirá-los, não amá-los. Mas chega de falar nisso. Queria somente fazê-lo ver meu ponto de vista. Queria falar dos sofrimentos da humanidade em geral, mas é melhor que me limite aos sofrimentos das crianças. Meu argumento ficará reduzido à décima parte, mas é melhor assim. Perco com isso, bem entendido. Em primeiro lugar, pode-se amar as crianças de perto, mesmo sujas, mesmo feias (mas me parece que as crianças nunca são feias). 250 Em seguida, se não falo dos adultos, é que não somente são repelentes e indignos de ser amados, mas têm uma compensação: comeram o fruto proibido, discerniram o bem e o mal, tornaram-se "semelhantes a deuses". Continuam a comê-lo. Mas as criancinhas nada comeram e ainda são inocentes. Gosta de crianças, Aliócha? Sei que as ama e compreenderá por que só quero falar delas. Sofrem muito, elas também, sem dúvida; é para expiar a falta de seus pais que comeram o fruto; mas é o raciocínio de um outro mundo, incompreensível para o coração humano aqui embaixo. Um inocente não saberia sofrer por um outro, sobretudo um pequeno ser! Isto o surpreenderá, Aliócha, mas eu também adoro as crianças. Note que os homens cruéis, de paixões selvagens, os Karamázov, às vezes amam muito as crianças. Até os sete anos, as crianças diferem enormemente do homem; são como um outro ser, com outra natureza. Conheci um bandido num cárcere; durante sua carreira, quando se introduzia de noite nas casas para roubar, assassinara famílias inteiras, inclusive as crianças. No entanto, na prisão, amava-as estranhamente. Só fazia olhar as que brincavam no pátio da prisão e tornou-se amigo de um menino habituado a brincar sob sua janela... Sabe por que digo isto, Aliócha? Estou com dor de cabeça e sinto-me triste. - Você está com um ar esquisito, como se não estivesse em seu estado normal - observou Aliócha com inquietação. - Apropósito, um búlgaro contou em Moscou - continuou Ivan, como se não tivesse ouvido seu irmão - as atrocidades dos turcos e dos cherqueses em seu país: temendo um levante geral dos eslavos, incendeiam, estrangulam e violam as mulheres e crianças; pregam os prisioneiros nas paliçadas pelas orelhas, abandonam-nos assim até de manhã, depois os enforcam etc. Às vezes compara-se a crueldade do homem com a dos animais selvagens; é uma injustiça para com estes. As feras não atingem jamais os refinamentos do homem. O tigre dilacera sua presa e a devora; não conhece outra coisa. Não lhe ocorreria pregar as pessoas pelas orelhas, mesmo que o pudesse fazer. São os turcos os que torturam crianças com um prazer sádico, arrancam os bebês do ventre materno, lançam-nos no ar para recebêlos nas pontas das baionetas, sob os olhos das mães cuja presença constitui o principal prazer. Foi outra cena que me impressionou. Pense nisto: um bebê ainda de peito, nos braços de sua mãe trêmula, e em torno deles os turcos. Ocorre-lhes uma idéia divertida: acariciando o bebê, conseguem fazê-l o rir; depois um deles aponta-lhe um revólver bem junto ao rosto. A criança ri alegremente estende suas mãozinhas para agarrar o brinquedo; de repente, o artista puxa o ga- 251tilho e rebenta-lhe a cabeça. Os turcos gostam muito, segundo dizem, de coisas doces. " - Meu irmão, a propósito de que vem tudo isto? - Penso que se o diabo não existe e, por conseguinte, foi criado pelo homem, este deve tê-lã feito à sua imagem. - Como Deus, então? - Você sabe usar as palavras muito bem, como diz Polônio no Hamlet - continuou Ivan, rindo. - Pegou nessa frase; mas seja, isto me agrada. Mas é belo o seu Deus, se a humanidade o fez à sua imagem. Perguntava ainda há pouco por que falo de tudo isto? Sou um diletante, um apreciador de fatos e anedotas; recolho-os dos jornais, anoto o que me é contado; isto já forma uma bela coleção. Os turcos figuram nela, naturalmente, com outros estrangeiros, mas tenho também casos nacionais que os ultrapassam. Entre os russos, as varas e o chicote têm lugar de honra; não se prega ninguém pelas orelhas, ora essa, somos europeus, mas nossa especialidade é açoitar e não seria possível privar-nos dela. Parece que essa prática desapareceu no estrangeiro em conseqüência do abrandamento dos costumes, ou então porque as leis naturais proíbem que o homem açoite seu semelhante. Em compensação, existe lá como aqui um costume, a tal ponto nacional, que seria quase impossível na Rússia, embora se adote também entre nós, sobretudo em virtude do movimento religioso na alta sociedade. Possuo uma interessante brochura traduzida do francês, em que se conta a execução em Genebra, há cinco anos, de um assassino chamado Richard, que se converteu ao Cristianismo antes de morrer, na idade de vinte e quatro anos. Era filho natural, "dado" por seus pais, quando tinha seis anos, a pastores suíços, que o educaram para fazer dele um trabalhador. Cresceu como um pequeno selvagem, sem nada aprender; aos sete anos, mandaram que levasse o rebanho pastar, no frio e na umidade, mal agasalhado e faminto. Aquela gente não sentia nenhum remorso ao tratá-Ia assim; pelo contrário, achava que tinha direito de fazê-Ia, porque lhe haviam dado Richard como uma coisa e não julgava necessário nem mesmo nutri-Ia. O próprio Richard conta que então, como o filho pródigo do Evangelho, quis até comer os restos de comida destinados aos porcos que eram engordados, mas era privado disso e batiam-lhe quando ele a roubava dos animais, foi assim que passou sua infância e sua mocidade, até que, tornando-se grande e forte, pôs-se a roubar. Aquele selvagem ganhava a vida em Genebra como jornaleiro, bebia seu salário, vivia I como um monstro e acabou assassinando um velho para roubá-Ia. \! Foipreso,julgado e condenadoà morte.Não.seé sentimentalnaquela l '"cidade! Na prisão, é logo cercado pelos pastores, pelos membros de associações religiosas, pelas senhoras patrocinadoras. Aprendeu a ler e a escrever, explicaram-lhe o Evangelho e, à força de doutriná-Io e de catequizá-Io, acabou por confessar solenemente seu crime. Dirigiu ao tribunal uma carta declarando que era um monstro, mas que o Senhor se havia dignado esclarecê-Io e enviar-lhe sua graça. Toda Genebra ficou emocionada, a Genebra filantrópica e beata. Tudo quanto havia de nobre e de bem-pensante acorreu à prisão. Beijam-no, abraçam-no: "Você é nosso irmão! Foi tocado pela graça!" Richard chora de enternecimento: "Sim, Deus iluminou-me! Na minha infânci~ e na minha mocidade, eu invejava a varredura dos porcos; agora, a graça tocou-me, morro no Senhor!" - "Sim, Richard, você derramou sangue e deve morrer. Não é culpa sua se ignorava Deus, quando roubava a varredura dos porcos e apanhava por causa disso (aliás, tinha bastante culpa porque é proibido roubar), mas derramaste sangue e deves morrer." Enfim chega o último dia; Richard, enfraquecido, chora e só faz repetir a cada instante: "Este é o mais belo dia de minha vida, porque vou para Deus!" - "Sim - exclamam pastores, juízes e senhoras patrocinadoras -, é o mais belo dia de sua vida, porque vai para Deus!" O grupo se dirige para o cadafalso, atrás da carreta que leva Richard. Chegam ao local do suplício. "Morra, irmão - gritam para Richard -, morra no Senhor, Sua graça o acompanhe." E, coberto de beijos, o irmão Richard sobe ao cadafalso, colocam-no na guilhotina e sua cabeça cai, em nome da graça divina. - É característico. A brochura foi traduzida para o russo pelos lu ter anos da alta sociedade e distribuída como suplemento gratuito a diversos jornais e publicações, para instruir o povo. A aventura de Richard é interessante porque é nacional. Na Rússia, embora seja absurdo decapitar um irmão pela única razão de ter-se tornado dos nossos e tê-Io tocado a graça, temos coisa quase igual. Entre nós, torturar batendo constitui uma tradição histórica, um gozo pronto e imediato. Niekrássov56 conta num de seus poemas como um mujique bate com seu chicote nos olhos de seu cavalo. Quem já não viu isso? É bem russo. O poeta mostra que o cavalo sobrecarregado, atolado com sua carroça, não pode desvencilhar-se. Então o mujique bate nele encarniçadamente, bate sem compreender o que faz, os golpes chovem numa espécie de embriaguez. "Não pode puxar, pois puxará assim mesmo; morra, mas puxe." O animal sem defesa debate-se desesperadaMente, enquanto seu dono açoita seus doc~s olhos, de onde rolam lágrimas. Enfim, ele consegue desatolar-se "e lá se vai tremendo, sem fôlego, num andar cambaleante, constrangido, envergonhado. Isto produziu em Niekrássov uma impressão espantosa. Mas também não se trata apenas de um cavalo que Deus criou para ser chicoteado? Foi o que nos explicaram os tártaros que nos legaram o chicote. No entanto, podese também açoitar as pessoas. Um senhor culto e sua mulher sentem prazer em açoitar com varas sua filhinha de sete anos. E o papai sente- se feliz porque as varas têm espinhos. "Isto causará mais dor assim", diz ele. Há seres que se excitam a cada golpe, até o sadismo, progressivamente. Bate-se na criança, um minuto, depois cinco, depois dez, sempre mais fortemente. Ela grita, afinal, já sem forças, sufoca: "Papai, meu papaizinho, tenha dó!" O caso torna-se escandalos e recorre-se ao tribunal. Toma-se um advogado. Há muito tempo que o povo russo chama o advogado de "uma consciência que se aluga". O defensor pleiteia em nome de seu cliente: "0 caso é simples; é uma cena de família, como se vêem muitas. Um pai açoitou sua filha, é uma vergonha processá-Io!". O júri fica convencido, recolhe- se e traz um veredicto negativo. O público exulta por ver absolvido aquele carrasco. Eu não assisti à audiência. Teria proposto criar uma bolsa em honra daquele bom pai de família!... É um belo quadro! No entanto, tenho ainda melhor, Aliócha, e sempre a propósito de crianças russas. Trata-se de uma menina de cinco anos, por quem seu pai e sua mãe criaram aversão, honrados funcionários instruídos e educados. Repito, é um pendor especial de muitas pessoas o prazer de torturar as crianças, mas somente as crianças. Para com os outros indivíduos, esses carrascos se mostram afáveis e ternos, como europeus instruídos e humanos; mas sentem prazer em fazer as crianças sofrerem, é sua maneira de amá-Ias. A confiança angelical dessas criaturas sem defesa seduz os seres cruéis. Não sabem aonde ir, nem a quem se dirigir, e isto excita os maus instintos. Cada homem oculta em si um demônio: acesso de cólera, sadismo, desencadeamento de paixões ignóbeis, doenças contraídas na devassidão, ou então a gota, a hepatite, isto varia. Portanto, aqueles pais instruídos praticavam . muitas sevícias na pobre menininha. Açoitavam-na, espezinhavamna sem razão, seu corpo vivia coberto de equimoses. Imaginaram por fim um refinamento de crueldade; nas noites glaciais, no inverno, trancavam a menina na privada, com o pretexto de que ela não pedia a tempo, à noite, para ir ali (como se, naquela idade, uma criança que dorme profundamente pudesse sempre pedir a tempo). Esfregavamlhe os próprios excrementos na cara, e sua mãe, sua própria mãe a obrigava a comê-Ios! E essa mãe dormia tranqüila, insensível aos gritos da pobre criança fechada naquele lugar repugnante! Você imagina aquele pequeno ser, não compreendendo o que lhe acontece, no frio e na escuridão, batendo com seus pequeninos punhos no peito ofegante e derramando lágrimas inocentes, chamando o "bom Deus" em seu socorro? Compreende esse absurdo, ele tem um propósito, meu amigo e meu irmão, você, o noviço piedoso? Dizem que tudo isso é indispensável para estabelecer a distinção entre o bem e o mal no espírito do homem. Para que pagar tão caro essa distinção diabólica? Toda ciência do mundo não vale as lágrimas das crianças. Não falo dos sofrimentos dos adultos. Eles comeram o fruto proibido, que o diabo os leve! Mas as crianças! Estou fazendo você sofrer, Aliócha, parece que não está passando bem. Quer que me pare? - Não, também quero sofrer. Continua. - Ainda um pequeno quadro característico. Acabo de ler nos Arquivos Russos ou em A Antigüidade Russa, não sei bem. Era na época mais sombria da servidão, no começo do século XIX. Viva o czar o libertador! Um antigo general, com importantes relações, rico proprietário rural, vivia numa de suas propriedades, da qual dependiam duas mil almas. Era um desses indivíduos (na verdade, já pouco numerosos então) que, depois de afastados do serviço militar, estavam quase convencidos de seu direito de vida e morte sobre seus servos. Cheio de arrogância, tratava do alto seus modestos vizinhos, como se fossem parasitas e palhaços seus. Tinha um centena de capatazes,todos a cavalo e uniformizados, e várias centenas de galgos. Um dia, um pequeno servo de oito anos, que se divertia atirando pedras, feriu na pata um daqueles cães favoritos. Vendo seu cão coxear, o general perguntou a causa. Explicaram-lhe o caso, indicando o culpado. Mandou imediatamente agarrar o menino, que arrancaram dos braços da mãe e fizeram passar a noite na prisão. No dia seguinte, logo ao romper da aurora, o general, em uniforme de gala, monta a cavalo para ir à caça, cercado de seus parasitas, de seus cães, de seus capatazes. Reúne-se toda a famulagem para que seja dado um exemplo e a mãe do culpado é trazida, bem como o menino. Era uma manhã de outono, brumosa e fria, excelente para a caça. O general manda que tirem toda a roupa do menino, o que foi feito. O menino tremia, louco de medo, não ousando dizer uma palavra. "Façam-no correr", ordena o general. - "Corra! corra!", gritam-lhe os capatazes. O menino começa a correr. "Cisca! Cisca!", berra o general e açula toda a sua matilha. Os cães estraçalharam a criaQ..ça'diante dos olhos de sua mãe, O general, parece, foi posto sob tutela. Pois bem que merecia ele? Seria preciso fuzilá-Io? Fale, Aliócha. I, I- Sim, fuzilá-Io! - proferiu mansamente Aliócha, totalmente pálido, com um sorriso cORvulso. - Bravo! - exclàmou Ivan, encantado. - Se você diz, é que... Vejam só, o asceta! Entãp você também tem um diabinho no coração, Aliócha Karamázov? - Disse uma tolice, mas... - Sim, mas... Fique sabendo, noviço, que as tolices são necessárias ao mundo; sobre elas é que ele se funda: sem essas tolices, nada aconteceria aqui na Terra. Sabemos o que sabemos. - O que você sabe? - Não compreendo nada - prosseguiu Ivan, como em sonho -, nada quero compreender agora. Atenho-me aos fatos. Tentando compreender, altero os fatos... - Por que me atormenta? - disse dolorosamente Aliócha. - Vai me dizer, finalmente? - Claro. Preparava-me para dizer. Gosto de você e não quero abandoná-Io ao seu Zósima. Ivan calou-se um instante e seu rosto ficou triste de repente. - Escute, limitei-me às crianças para ser mais claro. Nada disse sobre as lágrimas humanas das quais a Terra está saturada, abreviando de propósito meu assunto. Confesso humildemente não compreender a razão desse estado de coisas. Os homens são os únicos culpados; tinham-Ihes dado o paraíso, cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo do Céu, sabendo que seriam infelizes; não merecem, portanto, nenhuma compaixão. Segundo meu pobre espírito terrestre, sei apenas que o sofrimento existe, que não há culpados, que tudo se encadeia, tudo passa e se equilibra. São as bazófias de Euclides, eu sei, mas não posso concordar em viver baseando-me nisso. Que bem ???e pode fazer tudo isso? Preciso é de uma compensação, do contrário vou destruir a mim mesmo. E não uma compensação em alguma parte, no infinito, mas aqui embaixo, que eu mesmo a veja. Acreditei, quero ser testemunha, e se já estou morto, que me ressuscitem; se tudo se passasse sem mim seria bastante aflitivo. Não quero que meu corpo com seus sofrimentos e suas faltas sirva unicamente para arder a serviço de alguma harmonia futura. Quero ver com meus olhos a corça dormir junto do leão, a vítima beijar seu matador. É sobre este desejo que repousam todas as religiões e eu tenho fé. Quero estar presente quando todos souberem o porquê das coisas. Mas as crianças, que farei delas? Não posso resolver essa questão. Se todos devem sofrer, a fim de concorrer com seu sofrimento para a harmonia eterna, qual o papel das crianças? Não se compreende por que de- 256veriam sofrer, elas também, em nome da harmonia. Por que serviriam de material destinado a prepará-Ia? Compreendo a função do pecado e do castigo, mas ela não pode ser aplicada aos pequenos inocentes, e se na verdade são solidários com os erros de seus pais, é uma verdade que não é deste mundo e que eu não compreendo. Um galhofeiro malicioso objetará que as crianças crescerão e terão ocasião de pecar, mas aquele menino de oito anos ainda não havia crescido e foi estraçalhado pelos cães. Aliócha, não estou blasfemando. Compreendo como o universo estremecerá, quando o Céu e a Terra se unirem no mesmo grito de alegria, quando tudo quanto vive ou viveu proclamar: "Tens razão, Senhor Deus, porque Tuas vias nos são reveladas!", quando o carrasco, a mãe, o menino se beijarem e declararem com lágrimas: "Tens razão, Senhor Deus!" Sem dúvida, então a luz se fará e tudo será explicado. Mas a dificuldade é: não posso admitir esta solução. E tomo minhas providências a esse respeito, enquanto me encontro ainda aqui na Terra. Acredite-me, Aliócha, pode ser que eu viva até esse momento ou que ressuscite então, e talvez exclame com os outros, vendo a mãe beijar o carrasco e seu filho: "Tu tens r.azão, Senhor Deus!", mas será contra minha vontade. Enquanto ainda é tempo, recuso-me a aceitar essa harmonia superior. Acho que ela não vale uma lágrima de criança, daquela pequenina vítima que batia no peito e rezava ao "bom Deus", no seu canto infecto; não vale porque aquelas lágrimas não foram redimidas. Enquanto for assim, não se poderá falar de harmonia. Ora, não há possibilidade de redimi-Ias. Os carrascos sofrerão no inferno, você me dirá. Mas de que serve esse castigo, se as crianças também tiveram o seu inferno? Aliás, o que vale essa harmonia que comporta um inferno? Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. E se o sofrimento das crianças serve para completar a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde agora que essa verdade não vale esse preço. Não quero que a mãe perdoe o carrasco, não tem esse direito. Que lhe perdoe seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu seu filho estral;alhado pelos cães. Mesmo que seu filho perdoasse, ela não teria o direito. Se o direito de perdoar não existe, o que acontece com a harmonia? Há no mundo um ser que tenha esse direito? Por amor pela humanidade é que não quero essa harmonia. Prefiro conservar meus sofrimentos não redimidos e minha indignação persistente, mesmo s"e não tivesse razão! Aliás, deram realce excessivo a essa harmonia, a a entrada custa caro demais p'ara nós. Prefiro devolver meu bilhete de entrada. Como homem de 257 bem, tenho mesmo obrigação de devolvê-Io o mais cedo possível. É o que faço. Não me recuso a aClmitir Deus, mas muito respeitosamente devolvo-lhe meu bilhete. - Mas isto é revolta - disse mansamente Aliócha, de olhos baixos. - Revolta? Não era meu desejo ver você empregar essa palavra. Pode-se viver revoltado'? Ora, eu quero viver. Responda-me francamente. Imagine que os destinos da humanidade estejam em suas mãos e que para tornar as pessoas definitivamente felizes, proporcionarlhes finalmente a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas, a criança que batia no peito com seu pequeno punho, e basear sobre suas lágrimas a felicidade futura. Você concordaria, nestas condições, em edificar semelhante felicidade? Responda sem mentir. - Não, não concordaria. - Então, pode admitir que os homens concordariam em aceitar essa felicidade ao preço do sangue de um pequeno mártir? - Não, não posso admitir isso, meu irmão - declarou Aliócha, com os olhos cintilantes. - Você perguntou se existe no mundo inteiro um Ser que teria o direito de perdoar. Sim, este Ser existe. Pode perdoar tudo, a todos e por tudo, porque foi Ele quem verteu Seu sangue inocente por todos e por tudo. Você O esqueceu, é Ele a pedra angular do edifício e é a Ele que se deve gritar: "Tu tens razão, Senhor Deus, porque tuas vias nos são reveladas." - Ah! sim, "o único impecável" e "Seu sangue". Não, não O esqueci, admirava-me, pelo contrário, de que não O tivesse ainda mencionado, porque nas discussões os seus começam habitualmente por colocá-LO à frente. Fique sabendo, mas não ria, que compus um poema, há um ano. Se puder dar-me ainda dez minutos, vou recitá-Io. - Escreveu um poema? - Não - disse Ivan, rindo -, porque jamais compus dois versos sequer em minha vida. Mas sonhei esse poema e lembro-me dele. Você será meu primeiro leitor, isto é, meu ouvinte. Por que não aproveitar sua presença? Quer? - Sou todo ouvidos. - Meu poema intitula-se O Grande Inquisidor, é absurdo, mas quero que o conheça.
v O GRANDE INQUlSIDOR
- É necessário um preâmbulo do ponto de vista literário. A ação se passa no século XVI. Sabe que nessa época era costume fazer intervi-

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